domingo, 1 de agosto de 2021

Sobre o direito a uma boa morte

 


Livro-reportagem fala de cuidados paliativos e da morte humanizada


Por Giovana Damaceno


Esther* morreu em paz. Serena, reconciliada consigo mesma, com plena compreensão da doença que a acometeu e do fim da sua existência. A família também compreendeu e aceitou para ela o que o destino reserva para todos nós, com a diferença de que para Esther houve a oportunidade de sair da vida com dignidade, cercada de amor, amparada em sua própria cama, com alguém segurando a sua mão.

Essa é uma história real, de uma personagem real. Esther, como muitos outros pacientes que tiveram a chance de serem atendidos por uma equipe multidisciplinar de cuidados paliativos, enquanto se despedia da vida, pôde usufruir do direito humano de ter uma boa morte.

Oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) propõe a desospitalização e oferece a doentes terminais um caminho digno até a morte, com qualidade de vida enquanto há vida. Pacientes com metástases de câncer avançadas, por exemplo, que não respondem mais aos tratamentos, podem e têm o direito de serem liberados dos tratamentos fúteis, que apenas os mantêm conectados a aparelhos, sofrendo intervenções desnecessárias e invasivas. Esther esteve entre os 1.769 pacientes assistidos pelo SAD de Volta Redonda, em dez anos de atividade.

O atendimento em cuidados paliativos – hoje uma especialidade médica – foi institucionalizado em 1967, por iniciativa da enfermeira Cicely Saunders, que implantou uma conduta considerada exemplar na época. Diferente do tratamento que estabelece intervenções com objetivo de cura, Saunders propunha abordagem integral: que o indivíduo tivesse reconhecimento e controle de sua condição, que pudesse fazer escolhas, tomar decisões, resolver pendências materiais e emocionais.

Da perspectiva psíquica, Elizabeth Kübler-Ross, contemporânea de Cicely Saunders, foi quem detalhou o processo de morrer, descrevendo cada uma das fases emocionais que o paciente terminal atravessa – choque, negação, raiva, negociação, depressão, aceitação e decatexia (algo como frieza ou desinteresse pelo que ocorre consigo mesmo e ao redor). Todo o trabalho de Kübler-Ross está relatado no livro “Sobre a morte e o morrer”, no qual identifica essas etapas e cria métodos para médicos, enfermeiros e familiares acompanharem a ajudarem um paciente próximo do fim da vida. A obra, longe de ser um manual, é resultado de pesquisa que acabou por se tornar uma inovação para a medicina ocidental e uma quebra do tabu sobre a morte: o uso de técnicas suavizadas, de abordagem integral, para que o fim da vida seja mais ameno para os doentes, para os médicos que os atendem e para os familiares que os cercam.

Alguém pra segurar a minha mão


O detalhamento sobre as mortes de Esther e de outros pacientes, bem como entrevistas com familiares e o acompanhamento da equipe do SAD estão no meu livro “Alguém pra segurar a minha mão”, lançado em 2020 pela Editora Penalux. Trata-se de um livro-reportagem, cujo projeto nasceu da compreensão de que pacientes terminais têm direito a morrer em casa, longe da solidão das UTIs. Amiga pessoal do médico paliativista José Antônio Pereira Fernandes, conheci o trabalho do SAD bem de perto, ao participar das visitas domiciliares e testemunhar a equipe em atividade. 

Também mergulhei em literatura especializada – livros e artigos produzidos por profissionais em cuidados paliativos, para conhecer tanatologia, entender ortotanásia, saber da origem dos cuidados paliativos e como se espalharam mundo afora. Boas referências, além do já citado “Sobre a morte e o morrer”, da psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross, incluem “Em busca da boa morte”, de Rachel Aisengart; “Espiritualidade e finitude”, coleção de artigos organizada por Dulcinéia da Matta Monteiro; “Velai comigo”, da enfermeira Cicely Saunders; e “A morte é um dia que vale a pena viver”, da médica paliativista Ana Cláudia Quintana Arantes, entre outros.

Não pude deixar de dedicar um capítulo à medicina, ao médico levado à condição de Deus e sua dificuldade (poucas vezes revelada) em lidar com o fracasso da perda de seus doentes. Outro grande tabu da nossa sociedade, ao lado tabu da morte. Médicos são treinados para salvar vidas e trabalham incansáveis com esse objetivo, mesmo quando a morte já é inevitável.

Ao praticamente fazer parte da equipe do médico José Antônio durante a produção da reportagem, estive perto de vários pacientes em seus dias e minutos finais e relato três histórias que exibem a realidade como ela é e como penso que deveria ser para todos. Como digo no livro, “em princípio pensei ser forçoso tentar naturalizar a morte, contudo me dei conta de que não é possível naturalizar o que já é natural”.

“Alguém pra segurar a minha mão” é, ainda, testemunho da luta de profissionais em cuidados paliativos para uma mudança cultural que sacode o maior de todos os tabus da sociedade e ao mesmo tempo a nossa única certeza. É até difícil explicar, quando me perguntam “sobre o que é seu livro?”. É sobre a morte, mas não exatamente sobre a morte; é sobre o conceito de boa morte: que o ser humano possa sair de cena suavemente, em casa, acolhido pelos familiares, sob os cuidados e o carinho de alguém querido ao seu lado. 

Morrer sozinho, em qualquer situação, é muito triste. Com a óbvia exceção de outras diversas circunstâncias, se a pessoa cumpre todo seu ciclo de vida e com certeza vai chegar a hora de encerrá-lo, por que não na sua cama, na sua casa, perto de quem ama? É um direito elementar.



Serviço:

Alguém pra segurar a minha mão

Editora Penalux

Autora: Giovana Damaceno

À venda no site da editora: www.editorapenalux.com.br