sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Gordofobia médica: relatos de uma mulher gorda

Por Stephany Brito

Quando eu tinha 18 anos fui diagnosticada com Síndrome do ovário policístico. Nessa época eu pesava muito menos do que a metade do peso que tenho hoje. Desde então procuro o serviço de ginecologia pelo menos uma vez ao ano para acompanhamento. Em uma das minhas mudanças caí na mão de um médico um tanto gordofóbico e insensato.  Ele me pediu uma histeroscopia e, com o aparelho dentro do meu útero, falou: "Tá vendo isso aqui? Se você não fizer uma bariátrica vai virar um câncer". Eu, em choque, com a perna aberta e com um aparelho horrível dentro de mim, fiquei paralisada. Recomposta, questionei: “Se é meu útero que tá dando problema, por que tirar um pedaço do estômago se o mesmo tá ótimo?”. A resposta foi: “Porque você tem que emagrecer".



Claro que eu não ia entrar na faca sem pelo menos duas outras opiniões. E elas foram unânimes: "Não! Você não precisa de bariátrica. Precisa regular algumas coisas e acompanhar”. Coisa que eu já fazia há mais de 15 anos. Rasguei o pedido de bariátrica e nunca mais voltei.

Essa não foi a primeira vez que sofri gordofobia médica. Quando fiz 21 anos comecei a trabalhar e engordei cerca de 10kg. Na mesma época, tive alguns picos de pressão alta. Tudo de fundo emocional. Procurei um cardiologista e eis a surpresa: ele me passou remédio para pressão. Terapia para o problema emocional? Não! Me passou sibutramina. 

Emagreci 12kg e todos me elogiavam, nunca me senti tão desejada. Porém, nunca tive uma fase tão infeliz. Mas o que importava para as pessoas era como eu estava magra. E, mesmo ainda tendo os picos de pressão alta (que me acompanharam por mais dois anos), o médico me liberou.

E os casos não acabam por aqui. Recentemente peguei covid-19, nas idas e vindas da minha gata para o veterinário em um tratamento para um cálculo. Fiz o exame e, após o positivo, precisei retornar ao hospital para pegar um atestado. Cheguei ao hospital às 14h45 e a médica que me atendeu pediu uma tomografia. Com a demora do exame, ela acabou trocando de plantão e o médico que ficou no lugar dela, quando questionei se já podia me liberar, olhou para o exame e sem ler o laudo falou: "Você é obesa, vai ter que ficar internada." Eu rebati, então ele passou para outra médica e "lavou as mãos". A outra médica disse que não tinha necessidade, que a doença só estava em 5% do pulmão e que eu estava bem. Saí do hospital quase 23h. Sete horas expostas a cenas horríveis por causa de um médico gordofóbico.

Coisas assim e até piores acontecem com pessoas gordas o tempo todo. Então, quando você, pessoa gordofóbica vestida de boa samaritana, pensar em falar que se preocupa com a nossa saúde, vá então cuidar do nosso acesso à mesma sem preconceito médico.

domingo, 5 de setembro de 2021

Venas Abiertas

Editora popular levou uma coleção de livros escritos por mulheres à final do Prêmio Jabuti


Giovana Damaceno


A convite da coordenação do Pavio Curto, entrei para este coletivo para escrever sobre literatura produzida por mulheres, para a seção Vozes Explosivas. Aqui neste espaço pretendo mostrar o quanto e o que as escritoras têm publicado no Brasil, a despeito do machismo estrutural que ainda impera nas editoras e no mercado editorial como um todo.

Não por acaso, começo falando sobre a Venas Abiertas, editora popular idealizada e criada em 2018 pela Karine Bassi, escritora, dramaturga, atriz e produtora cultural. A Venas surgiu de uma parceria com o Coletivoz e seu primeiro projeto foi uma antologia com 22 autores da cena da literatura marginal, que ocupavam saraus e slams em Belo Horizonte (MG). Desde então, desenvolve projetos socioculturais de emancipação da produção literária marginal e periférica. Além desse trabalho nas e para as periferias, executa ações que envolvem as diversas margens, nos âmbitos social, de raça, gênero e afins. Hoje, a editora é tocada em parceria com a A|Borda, tendo como representantes também o Leandro Zere e a Joi Gonçalves. 



A Venas Abiertas funciona em formato de cooperativa, por meio de uma coordenação a partir da qual os trabalhos são distribuídos e organizados junto a artistas e profissionais da cadeia do livro, que vêm das periferias e atuam de forma independente. Profissionais que, na maioria das vezes, também não tiveram tantas oportunidades em suas áreas. Dessa forma, é possível unir forças em favor de publicações que tenham bom custo aos escritores e que permite a descolonização desse ambiente. “O nosso desejo sempre foi fazer com que as produções chegassem e avançassem, que todas as pessoas envolvidas fossem valorizadas e beneficiadas e que houvesse uma distribuição igualitária de retornos. Além de coletivizar as lutas e descentralizar as ferramentas, é uma das melhores formas de popularizar os espaços”, explica Karine. 

Importante contar para você, leitor do Pavio, quem é Karine Bassi. Não se trata apenas de uma mulher que resolveu, assim do nada, criar uma editora popular. Mineira de Belo Horizonte, escritora marginal periférica; mineira bairrista, criada pelas ruas do Barreiro, onde atua desde 2015 em projetos sociais e culturais, é professora de biologia por formação na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e educadora social “por pirraça”. Aos 31 anos de idade, atua na companhia de teatro marginal “5SÓ”; é produtora e mobilizadora cultural na “A|Borda” – produtora responsável por desenvolver atividades sociais, culturais e de emancipação de territórios no Barreiro e regionais adjacentes – e na Venas Abiertas. É designer gráfico, diagramadora, capista e articuladora. Suas últimas publicações próprias são o romance “Sob o Caminho uma Rajada de Ventos” (Venas Abiertas, 2020), e o livro de contos “Reboco” - vol 8. na coleção II, Mulherio das Letras (Venas Abiertas, 2020). Trabalha em projetos pessoais na área de dramaturgia e de performance junto à “5SÓ”, levando ao teatro a experiência com o slam e a palavra falada. Também tem planos de publicar um segundo livro de contos. Ufa!


Uma coleção de livros escritos por mulheres, que quase levou um Jabuti

Voltemos à Venas Abiertas para falar de um projeto marcante, lançado em 2019, em Natal (RN), durante o III Encontro Nacional do Mulherio das Letras: a I Coleção Mulherio das Letras de livros de bolso – no caso, livros de bolsa –, que chegou a ser finalista do Prêmio Jabuti no ano seguinte, na categoria Inovação-Fomento à leitura. Os detalhes dessa iniciativa e algo mais, você confere no papo a seguir:

Vozes Explosivas - A I Coleção Mulherio das Letras foi um enorme sucesso e a gente quer saber dos bastidores dessa ideia.

Karine Bassi - Quando pensei numa coleção de livros de bolsa somente com mulheres autoras, pensei justamente na revolução que é ter uma diversidade de escritoras vivas em um único lugar, um lugar de encontro para a palavra poética. Só não imaginei que tomaria essa proporção de abraço, de trocas, de possibilidades. A primeira coleção contou com a participação de 20 mulheres, e foi uma festa constatar que seria possível. Um grande desafio, na verdade, porque a editora ofereceu os serviços de edição de forma gratuita, as autoras apenas custearam a impressão e o valor exato que a gráfica cobrou, nem mais nem menos. Isso permitiu um valor bastante acessível. As autoras receberam suas tiragens integrais, sem repassar nenhum valor para a editora – é importante ressaltar isso porque, se não fossem as parcerias, não teríamos conseguido chegar nesse resultado tão bonito e significativo. 

VE – Daí ao Jabuti...

KB - Quando abriram as inscrições para o Prêmio Jabuti, esbarramos num momento muito complicado, que era o começo da pandemia de coronavírus. Eram muitas incertezas para várias de nós, o valor de inscrição alto, a gente sem livros impressos para enviar, como era solicitado no regulamento, enfim, a vontade latente e pulsante de concorrer, mas os percalços financeiros... Não faltava muito para encerrarem as inscrições, uma das autoras, a Cris lira, assumiu o compromisso de custear os valores necessários. Assim, por um grupo no WhatsApp, criamos o projeto, cada uma contribuiu com seus saberes.  Pronto, ali estávamos, inscritas, graças à parceria e à união dessas mulheres. 

VE - De que trata a coleção? O projeto tem umas especificidades bem interessantes. Conta pra gente.

KB - A coleção é diversa, múltipla, como as mulheres que a compõe. Cada qual com sua vivência, realidade, colocação social, raça, orientação afetiva. É um conjunto de livros de bolsa, construído no coletivo, com um design padronizado, a fim de unir todas as marcas transhistóricas contidas nas letras desse Mulherio. Cada autora que participa da coleção tem um volume específico que é distribuído por ordem alfabética, não para seguir um padrão estético, mas para firmar esses corpos através de seus nomes. São livros individuais que se potencializam no coletivo e afirmam a sororidade existente entre as participantes. A proposta de ser um livro de bolsa, num formato menor, veio da ideia de que além de reduzir os custos, a distribuição se daria por valores acessíveis, alcançando, desta forma, bolsos e bolsas de leitores. Assim, demarcamos a leveza da construção coletiva e cooperada. 

VE – E agora a Venas Abiertas já prepara uma terceira coleção, não é?

KB – Devido ao isolamento social, a segunda coleção foi de modo virtual, em 2020. A terceira segue os mesmos padrões das duas primeiras, de manter a estética coletiva, mas mantendo a individualidade de cada autora. Sai este ano ainda e já estamos pensando nos projetos de lançamento. Agora serão 33 autoras participantes.

VE – O que mais gostaria de acrescentar, que eu não perguntei?

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a palavra afiada nasceu com a avó da minha avó


era uma noite de chuva e pedras

de pedras no caminho

sem a poética do Drummond

era uma noite de surra

e pedras

no cachimbo

era uma noite de unhas e peles

e peles cortadas pela navalha

da palavra afiada da avó da minha avó.

que não se calava,

- não vou!

que não calava

- não vou!

que não se calava

- não!

que não se calava

- não!

que não se calava

a palavra afiada

que ardia todas as noites

quando o suor descia

na senzala escura

o corpo escuro

a negreza no corpo magro

a beleza do corpo negro

que mesmo açoitado pelo corpo branco

endurecido trazia conselhos

de não se calar!

o cheiro do corpo cheio

de marcas o corpo

em traças

o cheiro do copo cheio

de água

ardente é cachaça

pra aguentar

o cheiro do couro

o cheiro do couro queimando o couro

o coro

não vou!

a palavra afiada

não vou!

herdei da avó da minha avó

a navalha na carne

não vou!

me entregar.