Editora popular levou uma coleção de livros escritos por mulheres à final do Prêmio Jabuti
Giovana Damaceno
A convite da coordenação do Pavio Curto, entrei para este coletivo para escrever sobre literatura produzida por mulheres, para a seção Vozes Explosivas. Aqui neste espaço pretendo mostrar o quanto e o que as escritoras têm publicado no Brasil, a despeito do machismo estrutural que ainda impera nas editoras e no mercado editorial como um todo.
Não por acaso, começo falando sobre a Venas Abiertas, editora popular idealizada e criada em 2018 pela Karine Bassi, escritora, dramaturga, atriz e produtora cultural. A Venas surgiu de uma parceria com o Coletivoz e seu primeiro projeto foi uma antologia com 22 autores da cena da literatura marginal, que ocupavam saraus e slams em Belo Horizonte (MG). Desde então, desenvolve projetos socioculturais de emancipação da produção literária marginal e periférica. Além desse trabalho nas e para as periferias, executa ações que envolvem as diversas margens, nos âmbitos social, de raça, gênero e afins. Hoje, a editora é tocada em parceria com a A|Borda, tendo como representantes também o Leandro Zere e a Joi Gonçalves.
A Venas Abiertas funciona em formato de cooperativa, por meio de uma coordenação a partir da qual os trabalhos são distribuídos e organizados junto a artistas e profissionais da cadeia do livro, que vêm das periferias e atuam de forma independente. Profissionais que, na maioria das vezes, também não tiveram tantas oportunidades em suas áreas. Dessa forma, é possível unir forças em favor de publicações que tenham bom custo aos escritores e que permite a descolonização desse ambiente. “O nosso desejo sempre foi fazer com que as produções chegassem e avançassem, que todas as pessoas envolvidas fossem valorizadas e beneficiadas e que houvesse uma distribuição igualitária de retornos. Além de coletivizar as lutas e descentralizar as ferramentas, é uma das melhores formas de popularizar os espaços”, explica Karine.
Importante contar para você, leitor do Pavio, quem é Karine Bassi. Não se trata apenas de uma mulher que resolveu, assim do nada, criar uma editora popular. Mineira de Belo Horizonte, escritora marginal periférica; mineira bairrista, criada pelas ruas do Barreiro, onde atua desde 2015 em projetos sociais e culturais, é professora de biologia por formação na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e educadora social “por pirraça”. Aos 31 anos de idade, atua na companhia de teatro marginal “5SÓ”; é produtora e mobilizadora cultural na “A|Borda” – produtora responsável por desenvolver atividades sociais, culturais e de emancipação de territórios no Barreiro e regionais adjacentes – e na Venas Abiertas. É designer gráfico, diagramadora, capista e articuladora. Suas últimas publicações próprias são o romance “Sob o Caminho uma Rajada de Ventos” (Venas Abiertas, 2020), e o livro de contos “Reboco” - vol 8. na coleção II, Mulherio das Letras (Venas Abiertas, 2020). Trabalha em projetos pessoais na área de dramaturgia e de performance junto à “5SÓ”, levando ao teatro a experiência com o slam e a palavra falada. Também tem planos de publicar um segundo livro de contos. Ufa!
Uma coleção de livros escritos por mulheres, que quase levou um Jabuti
Voltemos à Venas Abiertas para falar de um projeto marcante, lançado em 2019, em Natal (RN), durante o III Encontro Nacional do Mulherio das Letras: a I Coleção Mulherio das Letras de livros de bolso – no caso, livros de bolsa –, que chegou a ser finalista do Prêmio Jabuti no ano seguinte, na categoria Inovação-Fomento à leitura. Os detalhes dessa iniciativa e algo mais, você confere no papo a seguir:
Vozes Explosivas - A I Coleção Mulherio das Letras foi um enorme sucesso e a gente quer saber dos bastidores dessa ideia.
Karine Bassi - Quando pensei numa coleção de livros de bolsa somente com mulheres autoras, pensei justamente na revolução que é ter uma diversidade de escritoras vivas em um único lugar, um lugar de encontro para a palavra poética. Só não imaginei que tomaria essa proporção de abraço, de trocas, de possibilidades. A primeira coleção contou com a participação de 20 mulheres, e foi uma festa constatar que seria possível. Um grande desafio, na verdade, porque a editora ofereceu os serviços de edição de forma gratuita, as autoras apenas custearam a impressão e o valor exato que a gráfica cobrou, nem mais nem menos. Isso permitiu um valor bastante acessível. As autoras receberam suas tiragens integrais, sem repassar nenhum valor para a editora – é importante ressaltar isso porque, se não fossem as parcerias, não teríamos conseguido chegar nesse resultado tão bonito e significativo.
VE – Daí ao Jabuti...
KB - Quando abriram as inscrições para o Prêmio Jabuti, esbarramos num momento muito complicado, que era o começo da pandemia de coronavírus. Eram muitas incertezas para várias de nós, o valor de inscrição alto, a gente sem livros impressos para enviar, como era solicitado no regulamento, enfim, a vontade latente e pulsante de concorrer, mas os percalços financeiros... Não faltava muito para encerrarem as inscrições, uma das autoras, a Cris lira, assumiu o compromisso de custear os valores necessários. Assim, por um grupo no WhatsApp, criamos o projeto, cada uma contribuiu com seus saberes. Pronto, ali estávamos, inscritas, graças à parceria e à união dessas mulheres.
VE - De que trata a coleção? O projeto tem umas especificidades bem interessantes. Conta pra gente.
KB - A coleção é diversa, múltipla, como as mulheres que a compõe. Cada qual com sua vivência, realidade, colocação social, raça, orientação afetiva. É um conjunto de livros de bolsa, construído no coletivo, com um design padronizado, a fim de unir todas as marcas transhistóricas contidas nas letras desse Mulherio. Cada autora que participa da coleção tem um volume específico que é distribuído por ordem alfabética, não para seguir um padrão estético, mas para firmar esses corpos através de seus nomes. São livros individuais que se potencializam no coletivo e afirmam a sororidade existente entre as participantes. A proposta de ser um livro de bolsa, num formato menor, veio da ideia de que além de reduzir os custos, a distribuição se daria por valores acessíveis, alcançando, desta forma, bolsos e bolsas de leitores. Assim, demarcamos a leveza da construção coletiva e cooperada.
VE – E agora a Venas Abiertas já prepara uma terceira coleção, não é?
KB – Devido ao isolamento social, a segunda coleção foi de modo virtual, em 2020. A terceira segue os mesmos padrões das duas primeiras, de manter a estética coletiva, mas mantendo a individualidade de cada autora. Sai este ano ainda e já estamos pensando nos projetos de lançamento. Agora serão 33 autoras participantes.
VE – O que mais gostaria de acrescentar, que eu não perguntei?
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a palavra afiada nasceu com a avó da minha avó
era uma noite de chuva e pedras
de pedras no caminho
sem a poética do Drummond
era uma noite de surra
e pedras
no cachimbo
era uma noite de unhas e peles
e peles cortadas pela navalha
da palavra afiada da avó da minha avó.
que não se calava,
- não vou!
que não calava
- não vou!
que não se calava
- não!
que não se calava
- não!
que não se calava
a palavra afiada
que ardia todas as noites
quando o suor descia
na senzala escura
o corpo escuro
a negreza no corpo magro
a beleza do corpo negro
que mesmo açoitado pelo corpo branco
endurecido trazia conselhos
de não se calar!
o cheiro do corpo cheio
de marcas o corpo
em traças
o cheiro do copo cheio
de água
ardente é cachaça
pra aguentar
o cheiro do couro
o cheiro do couro queimando o couro
o coro
não vou!
a palavra afiada
não vou!
herdei da avó da minha avó
a navalha na carne
não vou!
me entregar.
Entrevista maravilhosa com Karine Bassi! Uma poeta guerreira da qual tenho imenso orgulho de caminhar junto na III Coleção da Venas Abiertas!
ResponderEliminarLinda conversa! Muita admiração pela Karine! 🥰
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