sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Maria Cristina Martins une poesia e pintura em seu novo livro

Por Marlucio Luna

A escritora Maria Cristina Martins escreveu o seu segundo livro — Farândola — em um momento complexo em todos os sentidos. O nascimento do primeiro filho, a pandemia e a busca por manter vivo o processo criativo, em meio a tantos acontecimentos, fizeram com que ela descobrisse uma nova forma de expressão artística, a pintura, e a unisse à poesia. Farândola é o resultado desse tempo de buscas e descobertas, dúvidas e respostas. Os quadros pintados durante esse período ilustram o livro.



A poesia de Maria Cristina conta histórias, mergulha na vida, retrata o mundo de forma ampla. Como ela diz, são histórias “um pouco minhas, um pouco roubadas, um pouco inventadas”. Sem se ligar a estilos ou a formas pré-estabelecidas, a poeta mantém a prosa como uma referência em seu processo criativo.

Nesta entrevista, a poeta fala do seu amadurecimento enquanto escritora, de suas influências literárias, do papel da pintura quando viu a escrita “travada” e de como pincéis e tintas contribuíram para superar essa dificuldade. Maternidade e pandemia influíram não só no conteúdo dos poemas, mas também no próprio processo criativo. Em tempos nebulosos de Covid e isolamento social, Farândola é um encontro com a vida.



O que levou você a escrever poesia?

Sempre senti que escrevo por necessidade, mas fui percebendo que essa é uma sensação muito lugar-comum. Comecei a investigar, então, por que sinto essa necessidade, para tentar encontrar respostas mais interessantes. Tenho seguido a pista dos cinco mandamentos do Rubem Fonseca. Para ele, um escritor precisa ser: louco, alfabetizado, motivado, paciente e imaginativo. Acho que tenho um pouco de cada um desses itens. Alguns vão dizer que é mentira, que não tenho paciência. Mas eu tenho. Para escrever, eu tenho. Talvez eu gaste toda minha paciência aí, então não sobra para o resto. Ainda assim, não sei bem o que me motiva.  Acho que pode ser por eu ter a sensação de que escrevo melhor do que falo. Rubem Fonseca dá o exemplo de Manuel Vázquez Montalbán, que sendo “baixinho” e “um pouco feio”, escrevia para poder ser alto e bonito. 

Não sei se esses mandamentos só valem para os escritores de prosa. Não sei se é errado chamar um poeta de escritor, mas eu acho que não. Acho até que a parte da loucura vale mais para os poetas do que para os romancistas ou contistas. Em relação a esse item, vejo como um pré-requisito, mas também como um remédio: escrever para não enlouquecer.

No livro “Por que escrevo?”, que foi organizado por José Domingos de Brito, Gabriel Garcia Márquez diz que escreve para que seus amigos o amem mais. Acho que tenho um pouco disso também. Mas acho que também escrevo, embora não de forma consciente, para que me odeiem mais. Manuel Bandeira diz, no mesmo livro, que escreve porque não sabe fazer música. Eu também optaria pela música, se pudesse. Já William Faulkner responde: “para ganhar a vida”. Ah, quem me dera poder viver do que escrevo. O máximo que consegui dentro desse universo foi ganhar a vida como editora de textos/revisora no Arquivo Nacional [risos].


Como é seu processo de escrita?

Apesar de sempre ter lido muito mais prosa que poesia, meus textos saem como poesia. Talvez por isso meus poemas costumem contar micro-histórias. Eu tinha uma ideia para um romance, mas enquanto tentava escrevê-lo, fazia poemas, e comecei a perceber que o romance estava saindo nos poemas. Então, acabei escrevendo um livro de poemas que tinha um enredo bem marcado, o enredo que eu havia pensado para o romance (“Ovos de ferro”). Tem uma informação interessante sobre esse livro: ele iria se chamar “Omelete para Virgínia”. Mas o poeta Armando Freitas Filho me sugeriu colocar “Ovos de ferro”, que era da epígrafe, uma frase do Guimarães Rosa. Eu havia mandado o livro para ele avaliar, e ele não só adorou, como me disse que se eu não usasse “Ovos de ferro”, ele iria usar no seu próximo livro [risos]. Foi ele quem me indicou para a editora 7letras. No segundo livro, “Farândola”, tentei fazer o mesmo, mas comecei a me sentir muito amarrada, porque virou um troço obrigatório, e aí começou a ficar chato. Além disso, dois acontecimentos começaram a me levar para outros temas que o enredo que eu tinha criado não comportava: a maternidade e a pandemia. Então abandonei o enredo. E dessa vez quis publicar com meu amigo, jornalista e editor Paulo Sabino, curador do selo Bem-Te-Li, da editora Autografia.


Por que dar ao livro o título de “Farândola”? Esta palavra é pouco utilizada e raras pessoas conhecem o seu significado.

Não me lembro quando, mas em algum momento da minha vida fiquei obcecada por essa palavra. Tive blog com esse nome, que está abandonado; meu Instagram tem esse nome (farandola.mariacristinamartins) e, claro, meu segundo livro de poemas tinha de ter o título de “Farândola”. Se tivesse parido uma menina, ia ser uma briga! [risos] O motivo da obsessão eu sei: além da sonoridade bonita, essa palavra tem dois significados de que gosto muito, separadamente e juntos – farândola é um tipo de dança e é grupo de maltrapilhos. A dança dos maltrapilhos.


Na sua trajetória, dança, literatura e pintura se cruzam. Como se deu essa mistura?

Escrevo desde criança. No colégio, aos 13 anos, ganhei um concurso chamado Projeto Pequeno Escritor, com um livrinho artesanal que eu mesma fiz, uma prosa. Depois tive um conto publicado em um outro concurso, e também escrevia em blogs, depois no Facebook, ou mesmo só para mim. Mas demorei para publicar. Só fui publicar meu primeiro livro em 2016, aos 39 anos! Acho que, justamente, porque ficava nesse conflito entre prosa e poesia. A dança surge em 2007, quando comecei a fazer dança flamenca. Foi a única atividade que consegui levar adiante em toda a minha vida. Já a pintura aparece somente em 2020. 

No início da pandemia, voltei a ficar em casa com o bebê, mas agora trabalhando, não mais em licença-maternidade, e parei a dança que mal havia retomado. Por um tempo, fiquei um pouco travada na escrita, como se as palavras não estivessem dando conta do inusitado pelo qual estávamos passando. Então comecei a pintar. De forma totalmente amadora, ou melhor, pré-amadora. Primeiro com caneta e lápis comum, depois comprei material de pintura: tinta acrílica, guache, tinta a óleo, pincéis variados, papel de boa gramatura. Simplesmente comecei a pintar. Algumas das pinturas desse período compuseram o “Farândola”, pois percebi que elas dialogavam com os poemas. Por exemplo, a primeira sessão, intitulada “A memória é um moinho de vento”, tinha a ver com a pintura que chamei de Dom Quixote, em que havia um… moinho de vento, que também pode ser visto como um ventilador (personagem de um dos poemas); a segunda sessão, “Parir é uma fenda no tempo”, era ideal para ser aberta pela pintura “O peito”, por motivos óbvios [risos]. Para a terceira, “O amor é uma festa fortuita”, havia uma pintura que representava justamente uma festa. Isso aconteceu com as seis sessões. Identifiquei que havia seis temas no livro bem definidos, que dialogam entre si também, claro, e que para cada um deles havia pinturas que poderiam ser a eles relacionadas. Acho que fico com alguns temas na cabeça que acabam saindo nas diversas formas de arte a que me arrisco. O poeta Tarso de Melo, com quem fiz uma oficina de poesia recentemente, disse que os poetas geralmente passam a vida toda falando sobre um único tema. 


Quais são as suas influências literárias?

Sempre li muito mais prosa que poesia. Romance, principalmente. Li de “Cristiane F.” a “Ana Karenina”. De “Pássaros feridos” a “Germinal”. De “Um estranho no espelho” a “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, José Saramago, Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, Gabriel García Márquez, Dostoievski, Milan Kundera, Stendhal, entre tantos outros.

De poesia, lia os mais badalados, Drummond, Manuel Bandeira, Hilda Hilst, Paulo Leminski, João Cabral de Melo Neto, Ana Cristina C., T.S. Eliot, Vladimir Maiakovski, entre outros. De uns tempos para cá tenho buscado ler mais poesia, e mais contemporâneos, e mais mulheres. Fui percebendo como lia muito mais homens que mulheres, e não é porque as mulheres escrevam menos, não é mesmo! Então descobri Adília Lopes, Wislawa Symborska, Orides Fontela, Danielle Magalhães, Hannah Cavalcanti, Ana Martins Marques, Matilde Campilho, Amália Bautista, entre tantas outras poetas maravilhosas.


“Farândola” é o seu segundo livro de poemas. Qual a diferença deste para o primeiro?

Do meu primeiro livro, de 2016, para este de 2021, sinto que minha poesia está mais madura. Acho que por eu ter ido me aprofundar em um dos mandamentos do Rubem Fonseca: alfabetização. Não no sentido estrito da palavra, claro. Fui ler mais poesia, e ler sobre poesia, principalmente sobre poesia contemporânea. Aprimorei também a paciência, não ter pressa para terminar o poema, investigar e experimentar as várias formas de escrever um mesmo poema. Ainda não reconheço meu estilo, ainda não sei se terei um estilo, talvez eu seja como Millôr Fernandes, outro escritor que adoro. Sei que gosto de ler e de contar histórias, então a poesia que conta histórias é a que mais me encanta. Mas uma história pode ser contada de muitas formas, e todas as formas podem ser boas. Não sei ainda se tem uma forma pela qual eu goste mais de contar minhas histórias, minhas não necessariamente minhas. Histórias um pouco minhas, um pouco roubadas e um pouco inventadas. Acho divertido quando alguém me pergunta para quem é determinado poema. Muitas vezes pode até ter sido inspirado em alguém, ou em algum acontecimento, mas já foi tão transformado em outra coisa que já nem me lembro o que tem de biografia ali. Não me importa mais. 


“Farândola” foi produzido em um período extremamente complexo. Qual foi o impacto de escrever em meio a uma pandemia, logo após ter sido mãe e ainda trabalhar?

Escrever nessas condições foi um caos, mas foi muito bom. Descobri novas formas de me organizar para escrever. Aproveitar cada brecha de tempo. Escrever com o bebê no peito. Não dormir para escrever. Me trancar no banheiro para escrever. Anotar uma ideia rapidamente para desenvolver mais tarde. Estar sempre escrevendo, mentalmente, não esperar ter o tempo ideal da escrita, porque ele não vai existir. Aproveitar a brecha entre o fim da revisão de um texto e o início da revisão de outro. Transformar o intervalo do cafezinho em hora de escrever. Colocar roupa na máquina de lavar enquanto percebo um poema. Em um aspecto, talvez tenha sido, por incrível que pareça, até mais fácil do que antes, pois perdemos a vida social. Em vez do barzinho, escrevo. Em vez de visitar uma amiga, escrevo. Em vez das festinhas em que me acabava de dançar, escrevo. O que me interessa é arrumar um jeito de escrever. E, nessa, já tenho material para pensar num terceiro livro. Já tenho até uma opção de título. Mas agora tenho trabalhado mais a poesia com a dança. Tenho vontade de fazer um livro em que seja possível publicar os poemas “dançados”. Soube que já existem livros em 3D, quero investigar como é isso, se seria possível. Talvez eu esteja falando um tremendo absurdo, mas quem sabe? Desde a invenção do fax, a tecnologia não para de me surpreender.


Contato:

MSL Comunicação

(21) 99116-2417

livro.farandola@gmail.com

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Nossa luta diária é para nos libertar das mãos controladoras do patriarcado

 Com a esperança de, um dia, sermos – todas – quem quisermos ser


Ilustração Mani Ceiba*

Por Ana Carolina Maia*


Muitos acham que, quando estamos falando em violência contra a mulher, estamos apenas falando da forma física em que ela se apresenta. Mas a real é que a violência pode vir das mais variadas formas. E a nossa luta é acabar com ela desde ali da raiz. 

Me lembro de uma vez que eu, no auge da minha militância no movimento estudantil, fui convidada para mediar uma roda de conversa com alunos do ensino médio e a temática era “a cultura do estupro”. Como ela se manifesta de formas tão sutis e como, depois, cresce como um fungo penetrando todas as nossas camadas. E, muito importante salientar, como ela não tem nada a ver com sexo. Estupro não é sexual, é relação de poder. 

E é isso que move esse machismo que a gente encara todos os dias. Esse poder que ele vai acumulando pra si violentando, todos os dias, quem não está no seu patamar.

A violência diária, das mais variadas formas. Fora ou dentro de casa. Com milhares de nós ao redor do mundo. 

Quando comecei a me dar conta do que significava ser mulher, comecei a compreender todos os braços do machismo – que respirava um bafo quente bem no canto do meu ouvido sem que eu pudesse escutá-lo. E aí eu comecei a entender muita coisa.

Entendi também uma das coisas que tanto me espantou. A de que não basta a gente saber, não basta ter vivência, não basta a gente conhecer histórias e mais histórias. Nós todas estamos presas nas mãos controladoras do patriarcado. Que chega invisível e sorrateiro. Por vezes, pelas mãos de quem a gente menos espera.

A nossa luta diária é se libertar.

Porque, por mais voz que eu sinta que tenha hoje, ainda (por medo), eu não sou capaz de levantá-la e me defender quando sou violentada nas ruas por estar com o bico do meu peito marcando pelo simples fato de não usar sutiã (há uns bons cinco anos, graças a deus). 

Essa situação foi uma das últimas vezes em que fui assediada na rua. Repare bem “uma das últimas”. Não a primeira, certamente não a última. No primeiro momento veio o medo. Ele chegou bem próximo de mim, pensei que poderia me encostar. Depois senti vergonha. Cheguei a me encolher na rua tampando meus peitos. Quando cheguei em casa tive nojo. Depois, já me sentindo segura, veio a raiva.

A minha resposta continuará sendo me comportar e estar confortável do jeito que eu quiser.  E, por mais que eu entenda, e digo isso em letras garrafais, que MINHA ROUPA NÃO TEM NADA A VER COM O ASSÉDIO QUE EU SOFRO, ainda paro para pensar o que vou vestir em determinado local ou horário. Eu não posso, por exemplo, vestir meu body e passar aqui na rua de trás porque tem várias oficinas mecânicas e – toda vez – sou invadida. “Não posso”. Percebe? 

O machismo é tão forte que nos controla até mesmo em situações em que sabemos que estamos sendo controladas.

Como quando, até hoje, depois de dez anos eu não tenho coragem de contar para a minha família sobre o meu primeiro assediador. E o pior deles. Escondi essa “caixinha de trauma” tão bem escondida por tanto tempo que nem na terapia o assunto ainda surgiu. 

O machismo tem uma potência muito grande sobre a vida daquelas e daqueles que deseja controlar. Se você não se encaixar no padrãozinho que por eles é imposto, vira alvo. 

Acho que o que me fez continuar seguindo sempre foi saber que eu não estou sozinha. Que outras mãos, tão doídas quanto as minhas, estarão dispostas a me segurar quando for preciso. E que essa é uma luta que precisa do apoio de todo mundo. Todo mundo mesmo. E todo dia.

Pensando assim, finalizo esse texto/desabafo com uma frase da Audre Lorde que, desde a primeira vez que ouvi, nunca mais saiu da minha cabeça: “não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”.

* Carol Maia é jornalista de 29 anos. Ex-militante do movimento estudantil, hoje trabalha em uma agência como social media.
* Mani Ceiba (Fernanda Vaz) é desenhista, ilustradora, ceramista. Artista plástica formada pela EPA e faz bacharelado em artes visuais. Faz parte do coletivo Pavio Curto. Membro da direção do grupo de artes borboletadágua.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Eu prefiro trazer os submersos à superfície Contista, romancista e algumas vezes poeta, Cinthia Kriemler escreve sobre as misérias humanas, a dor e a violência

 Por Giovana Damaceno


Imagem pública da internet

Antes de qualquer coisa, preciso deixar registrado que sou muito fã dessa escritora e que qualquer exagero meu não será mero deslize. Admiro demais a obra, o estilo, o formato, a temática, a voz. Sem contar que é uma pessoa lúcida, consciente do papel que lhe cabe, equilibrada quando tem que ser, da mesma forma que pode soltar os pitbulls quando necessário e se estiver a fim.


Cinthia Kriemler, pra mim, é referência de liberdade da escrita e na vida. Uma mulher que chegou aquele momento da maturidade em que se permite escolher, fazer ou não fazer, bancar o que diz, realizar o que quiser, quando quiser. Assim vejo a escritora que mergulhou na escrita depois dos cinquenta anos e se descobriu apaixonada por esse ofício, cujo ambiente ainda é tão hostil às mulheres.


Ela nasceu no Rio, sob o signo de Áries, num Sábado de Aleluia. Filha única de uma mãe mineira e um pai carioca, mudou-se para Brasília aos onze anos e “foi aqui que cresci, estudei, trabalhei, me casei, me divorciei e tive uma filha (nessa ordem). Única também”. Leitora ativa, mas sem qualquer pretensão de escrever, além de textos e projetos relacionados à profissão de Jornalista, decidiu que queria dar uma guinada e fazer alguma coisa que dependesse somente dela. “O anúncio de um concurso de contos me atraiu. Participei. Não ganhei. Mas descobri que escrever era muito bom. Não parei mais”. 


O primeiro livro veio em 2010, lançado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal. Segundo Cinthia, totalmente confuso e sem unidade, resultado de certo desespero de colocar tudo no primeiro livro. Em 2012 conheceu a Editora Patuá, de São Paulo, que desde então publica suas obras. “Encontrei a minha voz, descobri meus interesses. E se, quanto à forma, eu esteja sempre aberta a mudanças, quanto à escolha dos temas sou mais rígida no recorte”.


No momento Cinthia Kriemler trabalha em um novo romance, ainda em fase de pesquisa. “Sou meio perfeccionista (se é que a gente pode ser ‘meio’). Descobri isso recentemente. Só me sinto segura depois que escrevo a ambientação e a estrutura básica de cada personagem”. Só que nem sempre é assim. Ela me contou que já aconteceu de mudar a personalidade de um personagem quando já estava no meio do livro. De repente, pensou: “Não quero que ela seja boazinha. Ela está muito chata. Quero que ela seja uma vilã.” Com um bocado de trabalho, trocou tudo. 


O objetivo é publicar o novo romance em 2022, embora saiba que o que escreve tem vida própria e rumos podem mudar a qualquer momento. Às vezes, procrastina; há fases de não querer escrever uma linha, até decidir que precisa modificar o texto. “Se não está interessante para mim, por que estaria para os outros? E nessa brincadeira de ir e vir gasto mais tempo”. 


Esse tempo lapida o trabalho que Cinthia nos oferece e que, ainda que admirado por muitos, pode ser rechaçado por outros tantos. No papo aí embaixo você vai entender o porquê. 


Vozes Explosivas - Contista, cronista, romancista e poeta. Como se dá sua vivência entre os gêneros? Algo que te toca mais, que te atraia mais e/ou que te consome mais?


Cinthia Kriemler - Sou contista e romancista, nessa ordem. E publiquei um único livro de poesia — até agora, nada nem ninguém me convenceu de que devo publicar outro. Eu não sou poeta. Ocasionalmente, escrevo poemas. Gosto deles. Mas é só isso. Embora ultimamente tenha me dedicado mais à escrita dos romances, não nego que sou apaixonada pelos contos.  Gosto de ver uma história inteira caber em poucas páginas. Os contos são o berço da minha escrita. Volto para beber dessa fonte constantemente. Apesar dessa predileção, tenho mantido um caso sério com o gênero romance. Ultimamente, me pego tentando ampliar um texto curto, pensando se não poderia se tornar um romance. Enfim, quando se trata das palavras, tudo me atrai. 


VE - Seu trabalho é conhecido e admirado pelo choque de realidade que provoca nos leitores. Personagens reais, histórias marcantes, duras e muitas vezes dolorosas de encarar. Como você chegou até esse estilo, essa voz?


CK - Acho que demorei um tempo para olhar um texto meu e me sentir realmente satisfeita com o tema e com a forma. Mas depois que me dei conta do que queria dizer, e como queria dizer, tudo fluiu. Sou essa pessoa que você descreveu. Minha escrita é voltada para os invisíveis, os excluídos, os que sofrem abusos, os abandonados, os que são vítimas de violência — física, psicológica, moral. Os sem voz. Para chegar nesse lugar, fui colhendo impressões de anos guardadas na memória, e também exercitando de forma permanente o ver e ouvir das pessoas ao meu redor. Quando a gente olha mais fundo, enxerga a dor e as privações. Quis mostrar as dores que, muitas vezes, são varridas para baixo do tapete. E, para fazer isso, é preciso incomodar. Quando digo que não escrevo finais felizes, não é por desacreditar na felicidade. É porque não tenho interesse em falar da vida de uma parcela mínima da sociedade — os felizes. Eu prefiro trazer os submersos à superfície. E tentar instigar reflexão. Quero mostrar os que sofrem. É um jeito de dizer que não estão sozinhos. A solidão vai muito além de não se ter um companheiro ou companheira de caminhada. A diversidade das faltas é maior e assustadora. E é sobre elas que falo na minha escrita. 


VE - Você afirma ter aprendido que o que escreve não vai interessar, tocar, agradar, despertar, atrair a todos. Por que não interessa? Acredita que nem todo mundo gosta de saber das misérias humanas? Considera que essa rejeição um dia possa ser superada?


CK - Não se pode agradar a todos. Esse é um clichê real. Estou de pazes feitas com isso. Mas é preciso falar sobre o que leva um leitor à rejeição de um texto: tem gente que não gosta de ler sobre as misérias humanas. Que se recusa a sentir ou ter que prestar atenção a elas. Em sua grande maioria, são pessoas encolhidas em suas bolhas de alienação. Que se desculpam dizendo: “Ah, a realidade já é tão feia! Prefiro ler coisas amenas, bonitas”. Fogem de tudo o que os possa incomodar em suas ilhas de paz pré-fabricadas. Sofrem da síndrome de Pollyana. Essas pessoas não querem se deixar tocar por nada de ruim. Pensam em si mesmas como espertas e inteligentes, driblando o mundo mau. Que mundo mau? Consideram que é burro, chato e irritante tudo o que não é bonito e agradável. Como as dores alheias. São, geralmente, pessoas egoístas, medrosas, que vivem na superfície. Mas existe também um outro tipo de pessoa que não se sente atraída pelos temas que eu abordo. Pessoas que vivem no limite de situações de dor e sofrimento. Fragilizadas, quebradas. Para essas pessoas, o que escrevo pode ser a gota d’água. Pelo menos num determinado momento. Pode ser um gatilho para mais dor e sofrimento. Um exemplo: como esperar que uma filha que perdeu recentemente a mãe de câncer vá querer ler uma história sobre um personagem idosa que morre de câncer? E há, finalmente, os que não me leem porque simplesmente não gostam da forma do meu texto. Não têm nada contra os conteúdos, mas não apreciam o meu estilo. Entendo e respeito os dois últimos grupos de leitores que citei. Quanto ao primeiro, lamento. Depois de tudo isso, não sei dizer se uma possível rejeição pode ou não ser superada. Talvez em alguns casos. Mas em vez de trabalhar com a hipótese da rejeição, prefiro buscar leitores. Em especial os críticos. Esses são capazes de interações ricas, maduras e muito gratificantes. E, se surge a aceitação, sei que foi mediante uma troca justa.


VE - As questões envolvendo a mulher são referências constantes nas suas obras: abusos, violência, velhice, desigualdade, solidão. Você é feminista?


CK - Sou. Sempre reluto diante dos rótulos. Principalmente quando abrigam crenças, causas e bandeiras que acabam se ramificando em definições e meandros que contenham confrontos, mesmo que partam de uma base única. Já me aconteceu de dizer que sou feminista e, no dia seguinte, ler um texto feminista que criticava alguma atitude na qual acredito. E também já me aconteceu o contrário. De ter dúvidas quanto a ser ou não feminista e ler um texto que me mostrava que sou. Às vezes, as diferenças dentro de uma mesma causa me causam incertezas. Especialmente quando, em vez de discutidas, se tornam agressões ou tentativas de dominação, num verdadeiro cabo-de-guerra. Então, fiz uma reflexão sobre as coisas nas quais sempre acreditei na minha vida, e na forma como sempre agi, e comparei com as ideias e posicionamentos do feminismo. Foi quando concluí que sou, sim, uma feminista. Extraí da reflexão que fiz o que acredito ser o mais importante no feminismo: respeito, direitos, igualdade, liberdade. Acredito em frases como: Meu corpo, minhas regras; Nem puta nem submissa (slogan criado pelo movimento feminista francês); Mexeu com uma, mexeu com todas. Quando leio e internalizo essas referências, percebo que o feminismo está construído sobre a sororidade. E vejo que, discrepâncias à parte, o feminismo está em mim desde antes de eu saber o que esse movimento queria dizer. O feminismo não é um modismo, uma mania, um oportunismo. É uma realidade transformadora. Para melhor.


VE - Suas obras não têm um vilão totalmente mau e nem uma mocinha totalmente boazinha. As personagens são criadas na perspectiva do ser humano normal, com seus lados bom e mau. É assim que você vê o ser humano?


CK - Exatamente assim. Não gosto da visão maniqueísta. Todo ser humano traz bem e mal dentro de si. Histórias de vida, gatilhos, traumas podem fazer o chamado lado bom ser suplantado, mesmo que temporariamente, pelo lado mau. O ser humano, frequentemente, confunde justiça com vingança. Comete um e se justifica pelo outro. Incluo-me nesse plantel. E não me culpo por isso. Gosto das emoções não domesticadas tanto quanto das emoções equilibradas. Depende da hora e da situação. Acho que as criaturas são assim, ondas irregulares. Mares que alternam tempestade e calmaria. E os meus personagens refletem isso.


VE - A liberdade é muito presente em seus textos. Liberdade de escolher como escreve, como gosta de escrever, sua formatação e linguagem própria também. Sua escrita foge muito aos padrões atuais do que conhecemos como “mercado literário”. Foi difícil soltar os freios? Acredita que para a mulher autora alcançar esse lugar é mais difícil? 


CK - Liberdade. Existe coisa mais preciosa? Um direito básico. E muita gente passa a vida sem desfrutar desse direito. Por cerceamento. Por escolhas equivocadas. Por medo. Liberdade é uma descoberta gradual e individual. Uma caminhada lenta, confusa e dolorosa. De idas e voltas. De retirada dos excessos muito mais do que de acúmulo. Na vida. Na escrita. Soltar os freios, pra mim, foi uma consequência dessa caminhada. Uma consequência muito prazerosa. Porque não depende dos outros. Você faz as escolhas: sim, não, ainda não sei, não quero, quero. E entende que tudo é resultado das suas escolhas. Você abandona os rumos predeterminados e vai fazer o que gosta. Arcando com tudo o que isso possa significar. Se outros gostam, é soma. Prazer multiplicado.

Quanto à última parte da sua pergunta, eu acredito que é mais difícil, sim. O que é que não é mais difícil para a mulher? Ou melhor, reformulando: o que é que não é mais dificultado para a mulher? A gente caminha arrastando os penduricalhos do preconceito, do sexismo, da misoginia, do machismo, da dominação, da manipulação, da culpa. Temos fantasmas ancestrais tentando nos puxar para trás o tempo todo:


Nem tenta, porque não vai dar certo. Você não vai conseguir. Os homens escrevem muito melhor que as mulheres. Mulheres escritoras adoram mimimi. Cai na real, só homem é que fica famoso. Só homem é que ganha prêmio. O mundo é dos homens. Por que você não escreve usando um pseudônimo masculino? Mulheres não devem escrever palavrão. Não é melhor cortar aquela cena de sexo? Fica parecendo apelação. Que tal escrever um final feliz pra variar? Por que você não escreve como fulano, sicrano, beltrano? 


É mais difícil, sim, para a mulher. E ainda há outras condicionantes que o preconceito impõe. Se a mulher é mais velha. Se mora fora do circuito São Paulo-Rio. Se nunca venceu um prêmio. Se publica por uma editora pequena ou se autopublica. Se não tem formação em Letras. Se não faz parte do grupinho certo. Se… Se… Se…

É pesado. Mas a gente dá conta. 


VE - Em que patamar você vê a mulher que escreve atualmente? Estamos superando o apagamento da mulher na literatura?


CK - Apagamento. Palavra assustadora. Desdobramento de desprezo, manipulação, dominação. De silenciamento. Palavra secular no universo da mulher. Estamos superando esse apagamento, mas ainda falta muito chão. São muitos obstáculos e armadilhas. Uma delas é o medo ou a insegurança de buscar a própria voz. Mas, apesar das dificuldades, não existe mais qualquer possibilidade de recuo. Não tem mais volta. Ninguém vai nos devolver a um tempo de castração intelectual. Não existe mais a opção do silêncio. 



Obras da autora:

Na escuridão não existe cor-de-rosa

Todos os abismos convidam para um mergulho

Tudo o que morde pede socorro

O sêmen do rinoceronte branco

Exercício de leitura de mulheres

Novena para pecar em paz (org.)

Todos os livros podem ser adquiridos na loja on-line da Editora Patuá.

Giovana Damaceno é jornalista e escritora. Escreve no blog pessoal www.giovanadamaceno.com. Autora dos livros: “Mania de Escrever” (2010), “Depois da Chuva, o recomeço” (2012) e “Do lado esquerdo do peito”, (2013) e "Alguém pra segurar a minha mão" (2020). 

Lei Maria da Penha: símbolo de luta e resistência

Por Eduardo Carvalho*

O aumento da violência contra as mulheres, muitas vezes praticada pelos seus próprios parceiros, somado à denúncia e mobilização da sociedade, mas principalmente dos movimentos feministas, tornou realidade no Brasil há 15 anos uma lei para prevenir e coibir tais atos violentos. A Lei nº 11.340 foi sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 7 de agosto de 2006. 

A Lei Maria da Penha se tornou um símbolo de resistência de mulheres contra a violência doméstica e familiar, e foi sendo aprimorada com o passar dos anos, principalmente pela pressão da representação feminina no Poder Legislativo.  

Sul Fluminense

Na região Sul Fluminense, muitas mulheres vítimas de violência têm recorrido à Lei Maria da Penha, que é aplicada e continua forte e eficiente. A jornalista Inês Pandeló, que era deputada estadual na época em que a lei foi criada e entrou em vigor, explica que “a Lei Maria da Penha configura como crime qualquer ação ou omissão baseado no gênero que lhe causa morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. 

- A violência doméstica tem um ciclo, que pode apaziguar e depois retomar em ato violento. Então, se você mulher está sofrendo esse tipo de violência, o melhor a fazer é registrar a ocorrência e pedir a medida protetiva, pois a Lei Maria da Penha tem salvo muitas vidas - informa Pandeló.

Ela comenta ainda que a violência pode acontecer das mais variadas formas, inclusive por meios digitais, como ameaça de morte através das redes sociais. O registro, tanto para casos como esses quanto por agressão presencial deve ser da mesma maneira. A denúncia pode ser feita em qualquer delegacia presencialmente ou ligando para 180, o número da Central de Atendimento à Mulher. O serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes.

Alguns casos recentes de violência contra a mulher na região Sul Fluminense foram registrados, inclusive de feminicídio. A polícia civil realizou em agosto a Operação Gaia contra suspeitos de violências contra mulheres, com 20 suspeitos sendo presos e 100 mandados cumpridos. 

Disque 180

Segundo a Central de Atendimento à Mulher, a maioria dos casos são agressões presenciais, mas isso não diminui a gravidade dos outros tipos de violências. De acordo com relatos do serviço Disque 180, 51,06% dos casos referem-se a agressões físicas, 31,10% a violências psicológicas, 6,51% a violência moral, 4,30 a violência sexual e 1,93 a violência patrimonial.

A patrulha Maria da Penha, exclusiva para mulheres vítimas de violência doméstica, dobrou o número de atendimentos nos dois primeiros meses de 2021 na comparação com o mesmo período do ano passado. Especialistas acreditam que o aumento se deu devido ao isolamento imposto pela pandemia, onde as mulheres ficaram mais confinadas com seus agressores em casa.

O artigo 7º da Lei tipifica como violência psicológica qualquer ‘conduta que cause dano emocional ou prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação da mulher; diminuição, prejuízo ou perturbação ao seu pleno desenvolvimento; que tenha o objetivo de degradá-la ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem, ridicularização, exploração, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio’. Traz também a definição da violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.


Instituto Maria da Penha

Em 2009 foi fundado o Instituto Maria da Penha, uma organização não governamental sem fins lucrativos. Com sede em Fortaleza, o Instituto busca estimular e contribuir para a aplicação integral da lei. Também promove e apoia ações sociais que elevem o nível de qualidade da vida física, emocional e intelectual das mulheres. Contribui para diminuir ações de indiferença, banalização e omissão nas questões de gênero, as quais reforçam a cultura da violência contra a mulher. Desenvolve um trabalho estratégico de conscientização sobre os conceitos ligados à cultura de gênero e violência sexista. 

Maria da Penha, mulher que leva o nome da lei e que sofreu violência doméstica diz que a lei surgiu para resgatar a dignidade da mulher brasileira Ela acredita que para o número de violência contra a mulher diminuir é necessário que existam em todos os municípios com mais de 60 mil habitantes as políticas públicas que atendem a Lei, os lugares em que existem aa políticas públicas o número e denúncias aumentou enquanto o de reincidências diminuiu. Quando o número de denúncias aumenta significa que as mulheres se sentem mais seguras para denunciar acreditando no poder do Estado. 

*estudante de jornalismo

terça-feira, 19 de outubro de 2021

 


Outubro Rosa: entrevista com Roseane Barbosa

Por Mani Ceiba

Também conhecido como neoplasia, o câncer de mama é caracterizado pelo crescimento de células cancerígenas na mama. Segundo dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA), é o segundo tumor mais comum entre as mulheres, atrás apenas para o câncer de pele, e o primeiro em letalidade.

Apesar dos dados alarmantes, sua ocorrência é menor antes dos 35 anos e nem todo tumor é maligno – a maioria dos nódulos detectados na mama é benigna. Além disso, quando diagnosticado e tratado na fase inicial da doença, as chances de cura do câncer de mama chegam a até 95%. Por isso, é extremamente importante a mulher aprender a se tocar, fazer o autoexame e observar seu corpo. Para mulheres acima de 40 anos, fazer a mamografia preventiva anualmente – ela é considerada um dos procedimentos mais eficazes na detecção precoce do câncer de mama. (Dados: mulheresconscientes)

Para falarmos mais sobre o assunto e ouvir quem já passou por isso, convidei Roseane Maria Barbosa, 63 anos, para uma bate-papo rápido. Com leveza e firmeza ao mesmo tempo, ela nos conta como foi passar esse momento.

Rose mora na região de Visconde de Mauá, e fez o tratamento fora do Estado do Rio, pelo SUS. Mas, agora de volta, faz aqui todo o acompanhamento também pelo SUS. Falamos pelo telefone e foi tudo muito simples e agradável. Rose fala sobre o tema com muita consciência e fé. 



Quando foi diagnosticada? Qual seu primeiro pensamento? Como foi aquele primeiro dia após o diagnóstico?

Maio de 2019. No primeiro momento fiquei um pouco desnorteada, mas logo em seguida pensei: ‘E agora? Por onde começo?’

Quanto tempo durou o tratamento?

O tratamento entre quimio, cirurgia e radioterapia no meu caso durou um ano.

Teve momentos que teve medo ou dúvidas e como fazia para se fortalecer?

Medo não! Dúvidas muitas em relação ao tratamento.

Para fortalecer: temos uma força que nem sabemos! Essa força surgiu naturalmente, mas tratei de reforçar na confiança total no Criador. Tinha certeza que estava passando por uma fase e que tudo passaria. Então aproveitei para observar o que a vida estava querendo mostrar. Porque sem dúvida nenhuma existem transformações com toda essa experiência e isso é especial.

O que mudou de prioridades durante o tratamento e depois?

Prioridades: essa sem dúvida é uma das lições! Passar na peneira o que realmente importa. Valorização da vida, passei sempre a dizer: ‘O que é um seio diante da vida?’ Sem falar na tomada de consciência, no amor próprio que não tem a ver com a beleza ou não do corpo, mas cuidar dele como um todo – mente e espírito.

Como foi fazer os exames e ver que estava curada?

Temos um bom tempo pela frente de 6 em 6 meses durante 5 anos com controle e exames, pois sempre existe uma ameaça. Mas não penso nisso, estou aprendendo a viver mais no aqui e agora e isso tem sido muito bom. O resto deixo na mão do Criador. Porém observo o movimento que a vida traz e leva.

Tem planos para seu futuro?

Não tenho plano pro futuro, se tenho um plano é só paz! Viver o máximo que a vida me dá!

Qual a lição ou conselho que pode dar para todas que estão passando pelo tratamento?

Lição: cada pessoa reage ao seu jeito. Só posso falar por mim, como eu reagi. Procurei aquietar sentimentos negativos e sem vitimismo. Fazendo jus a essas três palavras:

CONFIO – ACEITO – AGRADEÇO.


sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Gordofobia médica: relatos de uma mulher gorda

Por Stephany Brito

Quando eu tinha 18 anos fui diagnosticada com Síndrome do ovário policístico. Nessa época eu pesava muito menos do que a metade do peso que tenho hoje. Desde então procuro o serviço de ginecologia pelo menos uma vez ao ano para acompanhamento. Em uma das minhas mudanças caí na mão de um médico um tanto gordofóbico e insensato.  Ele me pediu uma histeroscopia e, com o aparelho dentro do meu útero, falou: "Tá vendo isso aqui? Se você não fizer uma bariátrica vai virar um câncer". Eu, em choque, com a perna aberta e com um aparelho horrível dentro de mim, fiquei paralisada. Recomposta, questionei: “Se é meu útero que tá dando problema, por que tirar um pedaço do estômago se o mesmo tá ótimo?”. A resposta foi: “Porque você tem que emagrecer".



Claro que eu não ia entrar na faca sem pelo menos duas outras opiniões. E elas foram unânimes: "Não! Você não precisa de bariátrica. Precisa regular algumas coisas e acompanhar”. Coisa que eu já fazia há mais de 15 anos. Rasguei o pedido de bariátrica e nunca mais voltei.

Essa não foi a primeira vez que sofri gordofobia médica. Quando fiz 21 anos comecei a trabalhar e engordei cerca de 10kg. Na mesma época, tive alguns picos de pressão alta. Tudo de fundo emocional. Procurei um cardiologista e eis a surpresa: ele me passou remédio para pressão. Terapia para o problema emocional? Não! Me passou sibutramina. 

Emagreci 12kg e todos me elogiavam, nunca me senti tão desejada. Porém, nunca tive uma fase tão infeliz. Mas o que importava para as pessoas era como eu estava magra. E, mesmo ainda tendo os picos de pressão alta (que me acompanharam por mais dois anos), o médico me liberou.

E os casos não acabam por aqui. Recentemente peguei covid-19, nas idas e vindas da minha gata para o veterinário em um tratamento para um cálculo. Fiz o exame e, após o positivo, precisei retornar ao hospital para pegar um atestado. Cheguei ao hospital às 14h45 e a médica que me atendeu pediu uma tomografia. Com a demora do exame, ela acabou trocando de plantão e o médico que ficou no lugar dela, quando questionei se já podia me liberar, olhou para o exame e sem ler o laudo falou: "Você é obesa, vai ter que ficar internada." Eu rebati, então ele passou para outra médica e "lavou as mãos". A outra médica disse que não tinha necessidade, que a doença só estava em 5% do pulmão e que eu estava bem. Saí do hospital quase 23h. Sete horas expostas a cenas horríveis por causa de um médico gordofóbico.

Coisas assim e até piores acontecem com pessoas gordas o tempo todo. Então, quando você, pessoa gordofóbica vestida de boa samaritana, pensar em falar que se preocupa com a nossa saúde, vá então cuidar do nosso acesso à mesma sem preconceito médico.

domingo, 5 de setembro de 2021

Venas Abiertas

Editora popular levou uma coleção de livros escritos por mulheres à final do Prêmio Jabuti


Giovana Damaceno


A convite da coordenação do Pavio Curto, entrei para este coletivo para escrever sobre literatura produzida por mulheres, para a seção Vozes Explosivas. Aqui neste espaço pretendo mostrar o quanto e o que as escritoras têm publicado no Brasil, a despeito do machismo estrutural que ainda impera nas editoras e no mercado editorial como um todo.

Não por acaso, começo falando sobre a Venas Abiertas, editora popular idealizada e criada em 2018 pela Karine Bassi, escritora, dramaturga, atriz e produtora cultural. A Venas surgiu de uma parceria com o Coletivoz e seu primeiro projeto foi uma antologia com 22 autores da cena da literatura marginal, que ocupavam saraus e slams em Belo Horizonte (MG). Desde então, desenvolve projetos socioculturais de emancipação da produção literária marginal e periférica. Além desse trabalho nas e para as periferias, executa ações que envolvem as diversas margens, nos âmbitos social, de raça, gênero e afins. Hoje, a editora é tocada em parceria com a A|Borda, tendo como representantes também o Leandro Zere e a Joi Gonçalves. 



A Venas Abiertas funciona em formato de cooperativa, por meio de uma coordenação a partir da qual os trabalhos são distribuídos e organizados junto a artistas e profissionais da cadeia do livro, que vêm das periferias e atuam de forma independente. Profissionais que, na maioria das vezes, também não tiveram tantas oportunidades em suas áreas. Dessa forma, é possível unir forças em favor de publicações que tenham bom custo aos escritores e que permite a descolonização desse ambiente. “O nosso desejo sempre foi fazer com que as produções chegassem e avançassem, que todas as pessoas envolvidas fossem valorizadas e beneficiadas e que houvesse uma distribuição igualitária de retornos. Além de coletivizar as lutas e descentralizar as ferramentas, é uma das melhores formas de popularizar os espaços”, explica Karine. 

Importante contar para você, leitor do Pavio, quem é Karine Bassi. Não se trata apenas de uma mulher que resolveu, assim do nada, criar uma editora popular. Mineira de Belo Horizonte, escritora marginal periférica; mineira bairrista, criada pelas ruas do Barreiro, onde atua desde 2015 em projetos sociais e culturais, é professora de biologia por formação na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e educadora social “por pirraça”. Aos 31 anos de idade, atua na companhia de teatro marginal “5SÓ”; é produtora e mobilizadora cultural na “A|Borda” – produtora responsável por desenvolver atividades sociais, culturais e de emancipação de territórios no Barreiro e regionais adjacentes – e na Venas Abiertas. É designer gráfico, diagramadora, capista e articuladora. Suas últimas publicações próprias são o romance “Sob o Caminho uma Rajada de Ventos” (Venas Abiertas, 2020), e o livro de contos “Reboco” - vol 8. na coleção II, Mulherio das Letras (Venas Abiertas, 2020). Trabalha em projetos pessoais na área de dramaturgia e de performance junto à “5SÓ”, levando ao teatro a experiência com o slam e a palavra falada. Também tem planos de publicar um segundo livro de contos. Ufa!


Uma coleção de livros escritos por mulheres, que quase levou um Jabuti

Voltemos à Venas Abiertas para falar de um projeto marcante, lançado em 2019, em Natal (RN), durante o III Encontro Nacional do Mulherio das Letras: a I Coleção Mulherio das Letras de livros de bolso – no caso, livros de bolsa –, que chegou a ser finalista do Prêmio Jabuti no ano seguinte, na categoria Inovação-Fomento à leitura. Os detalhes dessa iniciativa e algo mais, você confere no papo a seguir:

Vozes Explosivas - A I Coleção Mulherio das Letras foi um enorme sucesso e a gente quer saber dos bastidores dessa ideia.

Karine Bassi - Quando pensei numa coleção de livros de bolsa somente com mulheres autoras, pensei justamente na revolução que é ter uma diversidade de escritoras vivas em um único lugar, um lugar de encontro para a palavra poética. Só não imaginei que tomaria essa proporção de abraço, de trocas, de possibilidades. A primeira coleção contou com a participação de 20 mulheres, e foi uma festa constatar que seria possível. Um grande desafio, na verdade, porque a editora ofereceu os serviços de edição de forma gratuita, as autoras apenas custearam a impressão e o valor exato que a gráfica cobrou, nem mais nem menos. Isso permitiu um valor bastante acessível. As autoras receberam suas tiragens integrais, sem repassar nenhum valor para a editora – é importante ressaltar isso porque, se não fossem as parcerias, não teríamos conseguido chegar nesse resultado tão bonito e significativo. 

VE – Daí ao Jabuti...

KB - Quando abriram as inscrições para o Prêmio Jabuti, esbarramos num momento muito complicado, que era o começo da pandemia de coronavírus. Eram muitas incertezas para várias de nós, o valor de inscrição alto, a gente sem livros impressos para enviar, como era solicitado no regulamento, enfim, a vontade latente e pulsante de concorrer, mas os percalços financeiros... Não faltava muito para encerrarem as inscrições, uma das autoras, a Cris lira, assumiu o compromisso de custear os valores necessários. Assim, por um grupo no WhatsApp, criamos o projeto, cada uma contribuiu com seus saberes.  Pronto, ali estávamos, inscritas, graças à parceria e à união dessas mulheres. 

VE - De que trata a coleção? O projeto tem umas especificidades bem interessantes. Conta pra gente.

KB - A coleção é diversa, múltipla, como as mulheres que a compõe. Cada qual com sua vivência, realidade, colocação social, raça, orientação afetiva. É um conjunto de livros de bolsa, construído no coletivo, com um design padronizado, a fim de unir todas as marcas transhistóricas contidas nas letras desse Mulherio. Cada autora que participa da coleção tem um volume específico que é distribuído por ordem alfabética, não para seguir um padrão estético, mas para firmar esses corpos através de seus nomes. São livros individuais que se potencializam no coletivo e afirmam a sororidade existente entre as participantes. A proposta de ser um livro de bolsa, num formato menor, veio da ideia de que além de reduzir os custos, a distribuição se daria por valores acessíveis, alcançando, desta forma, bolsos e bolsas de leitores. Assim, demarcamos a leveza da construção coletiva e cooperada. 

VE – E agora a Venas Abiertas já prepara uma terceira coleção, não é?

KB – Devido ao isolamento social, a segunda coleção foi de modo virtual, em 2020. A terceira segue os mesmos padrões das duas primeiras, de manter a estética coletiva, mas mantendo a individualidade de cada autora. Sai este ano ainda e já estamos pensando nos projetos de lançamento. Agora serão 33 autoras participantes.

VE – O que mais gostaria de acrescentar, que eu não perguntei?

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a palavra afiada nasceu com a avó da minha avó


era uma noite de chuva e pedras

de pedras no caminho

sem a poética do Drummond

era uma noite de surra

e pedras

no cachimbo

era uma noite de unhas e peles

e peles cortadas pela navalha

da palavra afiada da avó da minha avó.

que não se calava,

- não vou!

que não calava

- não vou!

que não se calava

- não!

que não se calava

- não!

que não se calava

a palavra afiada

que ardia todas as noites

quando o suor descia

na senzala escura

o corpo escuro

a negreza no corpo magro

a beleza do corpo negro

que mesmo açoitado pelo corpo branco

endurecido trazia conselhos

de não se calar!

o cheiro do corpo cheio

de marcas o corpo

em traças

o cheiro do copo cheio

de água

ardente é cachaça

pra aguentar

o cheiro do couro

o cheiro do couro queimando o couro

o coro

não vou!

a palavra afiada

não vou!

herdei da avó da minha avó

a navalha na carne

não vou!

me entregar.